Levantamentos sobre as origens do Gnawa
O Gnawa é uma tradição que
combina espiritualidade, música, cerimônias de transe e possessão (a Lila ou Derdba) além de costumes e hábitos. Presentes no norte africano
islamizado, essa manifestação recebe no Marrocos esse nome, Gnawa, porém na
Tunísia é identificado como Stambali, e na Argélia também é reconhecido como
Diwane, com variações em diferentes níveis. Muitas influências são traçadas
pela cultura sub-sahariana, região de onde origina e migra para o Magreb,
países islamizados do norte africano.
Pintura de Mohamed Tabal |
No Marrocos, os gnawas consideram-se
descendentes espirituais de Bilal AL-Habashi, o “Sidna Bilal” (Nosso Senhor
Bilal), o etíope negro que foi o primeiro muezzin
do Profeta Maomé, aquele que chama o fiel muçulmano para orar com seu canto.
Nascido em Mecca e filho de pais etíopes que haviam sido escravisados, Bilal
converteu-se ao islamismo e acompanhou Maomé. Este é o protetor que representa
Gnawa. Existe em Essaouira um templo dedicado a Bilal, a Zaouia de Sidna Bilal,
que é um local para cerimônias para os gnawas, celebração do moussem (peregrinação ou encontro
espiritual, em Essaouira o Moussem de Gnawa ocorre no mês de Chabaâne, o mês
prévio ao Ramadan, e a cerimônia, feita na Zaouia de Sidna Bilal dura 3 dias.
O termo Gnawa pode ser
considerado em três níveis: primeiro refere-se ao povo gnawa, africanos oriundos
do sul do deserto do Sahara. O segundo nível refere-se à tradição Gnawa que
envolve a prática mística da Lila, a Derdba (cerimônia de caráter animista,
com “musico-terapia” e transe espiritual). O terceiro entendimento para Gnawa refere-se à música desse povo de
origem sub-saariana.
Em seus cantos sagrados,
durante a Lila, os gnawas falam de espiritualidade, libertação, sofrimentos,
citam suas entidades e santos. Clamam ao profeta Maomé e citam pilares do Islã
e o Al Corão. Mesclam-se mistérios em idiomas que atualmente muitos não
entendem, e chamam em bambara, em fulani, em hauça.
O Marrocos manteve relações
estreitas com Impérios do sul, como o Sangay, através da Rota de Tumbuctu, que atravesando
o Saara, chegava ao atual no Mali. Por essa rota, muita história transitava, através
de colonizadores e mercantis e suas relações trans-saarianas.
Dentro muitas hipóteses sobre
a verdadeira origem etimológica do termo Gnawa
(existe atualmente uma releitura da origem do Gnawa, de perfil panafricano, em contraste com um
discurso do Gnawa colonialista) pode-se dizer que a palavra Gnawa deriva do
termo kanawa, “hauça-fulani”, para
denominar as pessoas oriundas da cidade sub-sahariana de Kano, na atual
Nigéria.
Tudo indica que os Gnawas
possuem descendentes na cidade de Kano, a capital do Império Hauça-Fulani
esteve muito próxima ao Marrocos por séculos. As influências desse império
Hauça de Kano no Marrocos atinge parâmetros culturais, espirituais e sociais da
vida magrebí atual.
Sabe-se que foi profunda a
presença da Guarda Negra (Black Guard) no Marrocos, composta por uma guarda
oriunda do Oeste Africano (sobretudo do grande império Hauça).
Esse exército foi composto pelo sultão Alauite
do Marrocos, Mulai Ismail (1672-1727). Agruparam-se famílias que se estabeleceram
para trabalhar no palácio, e seguir de gerações a gerações a tradição desse
exército. Desde jovens, eram treinados em artes da guerra, e conservavam capacidades
espirituais de sua tradição original (Sendo a tradição do Bori um laço conexão com a expiritualidade Gnawa), técnicas
manufatureiras, entre outros.
O Exército Negro já foi considerado
simplesmente um exército de escravos, por um discurso colonial. Por outro lado,
a posição social dessa Guarda Negra
não pode ser resumida ao escravismo. As posições sociais trans-saarianos variavam e seu lugar na sociedade também. Sabe-se
que essa guarda, em dado momento, era
altamente valorizada, e teve imensa importância no estabelecimento e constituição
do Marrocos como Reino, numa época onde Mulay Ismail, o Sultão necessitava
suporte para defesa do território. Defendiam o solo das invasões que eram
numerosas, atuavam na cobraça de taxas, e no estabelecimento da zona rural. A sombra da escravidão, ainda que questionada,
obscurece a memória das as verdadeiras origens e vínculos que a diáspora Gnawi exerceu no Marrocos.
Para alguns teóricos como
Georges Lapassade em Os Gnawas de
Essaouira: os rituais de possessão dos antigos escravos negros ontem e hoje
1976, existe uma aproximação do Voodoo do Caribe, o Candomblé do Brasil, a
Santería Yorubá de Cuba com os rituais extáticos arabo-islâmicos como o Diwan
da Argélia, a Derdba do Marrocos e o Stambali da Túnísica, passando claramente
pelo Bori da Nigéria:
Essa unidade relativa de conteúdos religiosos, de instrumentos
musicais e de ritmos, de formas de expressão, evocam imediatamente um outro
grande conjunto de rituais negros vindos da escravidão, grupo constituído pelo
Caribe e América Latina.
Maâlem, por que essa música é espiritual?
O mistério faz parte e a intimidade e espontaneidade
está presente no Gnawa. A música tradicional apresenta características bem
diferentes do que hoje em dia se encontra na indústria musical. O Maâlem, o
mestre, vive o que canta, e o que ele canta, o conecta com seu passado, com
seus ancestrais espirituais e com a comunidade onde se insere.
O repertório é repetido e
conservado oralmente de geração a geração. A memória é cantada. A religião e a
moralidade passam pela musica, por séculos e séculos, e se atualizam no coração
de cada um.
O transe é na sociedade
marroquina um tipo de comportamento social que é aceito no meio popular, ao
mesmo tempo em que é descreditado nos meios burgueses, como afirma Lapassade.
Além dos Gnawas, existem
outras confrarias de sufismo-popular, como são denominadas, no Marrocos.
Podem-se citar as
irmandades dos Aissawa, Hamadcha e Haddaratts.
A
figura do mestre gnawa é de respeito, e o processo de aprendizagem, longo.
Habitualmente o grupo de gnawa, formado pelo mestre e os koyos (os dançarinos-músicos que tocam os krakabs, as castanholas
de ferro) possui laços familiares ou de estreita relação. O aprendiz deve
passar horas aprendendo do mestre como tocar o guembre, por observação.
Além da sabedoria da
musicalidade de todo o instrumental tagnaouite,
e seus distintos instrumentos, o Maâlem deve saber construir seus
instrumentos. A arte de trabalhar a madeira, o ferro, os couros para o guembre
e tambores.
O ritual da Lila exige muito do mestre. Ele deve estar preparado
fisicamente e espiritualmente, afinal o trabalho dura a noite inteira. A Derdba tradicinal, antigamente, durava 7
noites, 3 noites, ou em certas casas ou peregrinações, semanas.
A sabedoria de um mestre é preciosa, pois somente ele e a moqdema (mestra espiritual e cerimonial,
vidente, que incorpora as entidades) conduz uma cerimônia. Todos os cantos
devem ser tradicionalmente tocados ritmicamente, melodicamente e em sua letra,
em uma ordem determinada pela cerimônia e seus distintos momentos.
A cidade de Essaouira é conhecida por possuir uma escola diferenciada, quanto
ao estilo. Chamam estilo swiri, a
esta maneira peculiar, que somente os mestres de lá conhecem, e que foi
consagrado pelos mestres da família Guinia. Fora de lá, em Casablanca ou
Marrakech, o estilo é chamado habawi.
Entre os gnawis, existe uma língua, gíria, falada somente por eles, onde
idiomas africanos como o bereber, fulani, bambara se misturam a gírias e ao
árabe.
Os Instrumentos Musicais
Os instrumentos tradicionais do Gnawa são:
·
O guembrê ou sintir – é um
baixo acústico de três cordas, feito de madeira. A caixa acústica é revestida
de pele de cabra ou camelo, o que torna o guembrê um instrumento melódico e
rítmico. As três cordas são obtidas através do ressecamento de tripas de cabra,
em tamanho fino, médio e grosso. O som é grave e orgânico. A escala musical
utilizada é pentatônica, conhecida por ser espiritual e primordial.
·
Krakabs - São castanholas de
ferro, tocadas pelos koyos, que em certos momentos da cerimônia ou performance,
dançam e tocam ao mesmo tempo, vigorosamente. O ritmo é circular, e o volume
alto, o timbre marcante, o que ajuda a induzir
o adepto em um transe. Os ritmos utilizados se aproximam ao que no
acidente é o 4/4 e o 6/8.
·
Tabal – São os tambores
tocados no início da cerimônia, em um cortejo chamado Aada, que chama as entidades espirituais. Também é utilizado nas Krimas, as performances feitas nas
praças públicas.
As Cores da Lila
A Derdba é uma cerimônia
de sufismo-popular e animismo, onde
está presente a música, possessão e transe. Também conhecida como Lila (do
árabe, Noite) possui particularidades em cada região marroquina.
Os participantes são os
adeptos desse ritual que tradicionalmente, solicitam uma Lila, para sua cura
espiritual, ou física. É um acontecimento familiar, e comunitário. Na tradição
uma Lila é feita em casa, e a comunidade participa, tendo acesso à casa durante
toda a noite. Não apenas a pessoa que solicita a Lila entra em transe e se
beneficia do ritual, mas todos os que necessitem e participem dessa comunidade
recebem a baraka. As mulheres são
maioria, a entrarem em jdba, o transe
espiritual.
Estão presentes o Maâlem,
koyos, a Moqdema (vidente ou chefe de cerimônia, normalmente uma mulher), cozinheira,
ajudantes, familiares e amigos.
A fim de descrever
resumidamente a simbologia da Lila e proporcionar uma dimensão visual dessa,
podem-se observar distintos momentos no ritual em relação às entidades (mluk no plural e mlek no singurar) as quais se evocam.
·
Preparação
A preparação pode durar
dias. O animal a ser sacrificado na Dbha (sacrifício)
deve ser escolhido. Preparam-se as oferendas, roupas, véus de cores, comidas e
o espaço onde se realizará a cerimônia.
·
Vermelho: a Dbha
O Sacrifício pode ser realizado ainda durante o dia, em nome
de quem solicita a Lila. Sacrificam uma cabra, vaca ou até mesmo um camelo
fêmea, a ngara. O Maâlem toca para
Baba Hamou, o dono dos Matadouros, e o transe ocorre na pessoa enferma ou na moqdema.
O ritual só se inicia,
após o pôr do sol.
·
A Aâda ou Cortejo
Na porta da casa, as mulheres solteiras levam velas em suas
mãos e os gnawa tocam os tambores. Esse cortejo simboliza um chamado, uma festa
de casamento, onde as entidades espirituais são evocadas à casa. São oferecidos
leite e tâmaras, representando uma baraka
espiritual.
·
L’oulad bambra e negcha
Músicas tocadas ainda sem a presença possessão, falam de
situações cotidianas, e do Islã. Os músicos entretêm o público: batem palmas,
dançam, mas ainda não tocam o ferro, os
krakabs.
·
A ceia
Em toda Lila, a Ceia é um
momento importante, depois dela, o momento espiritual e de transe aproxima-se.
O alimento é parte fundamental da cultura marroquina. Come-se a carne do
sacrifício, em muitas ocasiões. Tagines,
Cuzcuz, pães, biscoitos e carnes são
servidos. Além da ceia, muitas entidades espirituais, Mluks, pedem comidas que
os adeptos compartilham. Aisha Kandisha
gosta de ovos, azeitonas pretas e pão integral. Lala Mira gosta de doces. O pobre Boudrebala recebe pães secos, torrões de açúcar. Baba Hamou usa o mel como “sangue”, que
é dado aos adeptos em jdba (transe).
·
Ftah:
Existe um momento para a Baraka, a bendição divina. O Maâlem
e a Moqdema transmitem essa benção através de rezas e canções especiais, o dinheiro
é dado em troca.
lila - pintura de Aziz Oumoussa |
·
Os Mluks chegam
Quando a mokdema
coloca bhor, o incenso que queima em
frente ao Maâlem, é sinal de que a partir desse momento, as canções tocadas são
suítes para os grupos de Mluks, que se separam por cores, dependendo de suas características
e poderes. Cada espírito prefere um tipo de aroma; utilizam-se vários tipos de jawi, e benjoim.
Durante o
transe, o adepto dança recebe um véu que cobre sua cabeça, da cor que
corresponde à entidade que o possui.
As danças podem ser frenéticas, os pés batem no chão ao ritmo
exato do guembrê, como se esse guiasse os passos. Muitas entidades possuem
danças especiais, que somente iniciados podem realizar. As pessoas que
incorporam Sidi Moussa, ou Moisés, por exemplo, dançam em círculo sinuosamente
como se nadassem e abrissem as águas. Um deles, normalmente a Moqdema, equilibra uma taça de água na
cabeça, de olhos fechados, enquanto dança de pé e pelo chão.
·
Branco –
Um dos mlek é Abdelkader Jilali. Nesse momento inicial
é tocada uma suíte musical longa que lembra os santos do Islã. Pessoas anciãs
costumam entrar em transe, ou aquelas que são antigas na tradição.
·
Verde
Os Chorfa, os
xerifes espirituais do Islã, são representados pelo verde.
Uma entidade conhecida é Mulay
Ahmed.
·
Retalhos de todas as cores: Buheli (Espírito do Viajante, o
peregrino).
·
Retalhos de todas as cores: Budrebala.
Entidade que representa o mendigo, a esmola, a caridade, o
voto à pobreza e à austeridade, a humildade.
·
Preto
Existem vários grupos de entidades que são representados pelo
preto, que são tocados ao longo da Lila, como Os Ouled Ghaba (filhos da floresta) a temível figura feminina Aisha
Kandisha.
Primeiramente, numa Lila quem aparece é Sidi Minoum (as
pessoas em transe dançam com as velas) e Lalla Minouna (espírito feminino).
·
Vermelho
Duas entidades da suíte vermelha é Hamouda e Baba Hamou,
dizem ser o Senhor do Matadouro, dono do sangue.
·
Azul
O Samawi são entidades do azul do céu;
Já os Mussaouwin são entidades representadas pelo Azul do
Mar. Sidi
Mussa, o Moisés está presente no
Islamismo. Representa a abertura das águas, quando Moisés cruza o mar vermelho libertando
seu povo do Faraó do Egito.
A figura de Aisha Kandisha vai além dos rituais de Gnawa. Em
todo território, existem lendas sobre essa figura. Dizem que Aisha foi temida
por matar colonizadores, por vezes portugueses, que invadiam seu território, em
busca de vingança por haver perdido seu amado mouro em uma batalha. Dizem
possuir pés de cabra. É cultuada principalmente por mulheres em todo Marrocos e
recebe diversas qualidades, Aisha da praia, da gruta, da fonte... Seu lugar
principal de culto é em uma gruta em Sidi Ali, próximo a Meknes. Popularmente
representa a história de Isis, a deusa Egípcia.
·
Roxo
Muitas entidades femininas existem nesse ritual, em diversas
cores. Podemos citar Lalla Melika, representa a feminilidade da rainha, Melika.
·
Amarelo
Lalla Mira representa
o nascer do dia, e as variações mentais, e emocionais da mulher. Em sua suíte,
usam perfume e doces para agradá-la.
O nascer do dia simboliza o nascer a uma libertação e à
superação de um obstáculo. Com o nascer do dia a representação cosmogônica
fecha seu ciclo mágico. A cura está em todos, e lhe dizem bsauraha, o que significa “saúde”.